Começo aqui a lançar alguns dos meus contos, do livro "Sempre que a vontade vem". São narrativas construídas dentro do universo íntimo, sem história, sem ação. Personagens são seres humanos, certamente atravessados pelas misérias do cotidiano, pelas intensas forças que chamamos vida.
Essas forças são a verdadeira imagem do antogonismo, da violência de choques, da alternância dos estados. Assim se define a sua beleza: arte. Vida e arte são sinônimos, se considerarmos vida a manifestação dessas forças na sua integridade, sendo acatadas. O homem sucumbe em seu esforço vão de controlar o que é pura natureza. O cortejo fala sobre isso. Fala não, experimenta, se deixa tragar pelo sonho, pelo devaneio, caminho traçado em meio às veredas.
O Cortejo
Mais uma vez ela entrou no quarto e me olhou profundamente. Eu havia sonhado a noite inteira com uma cena de amor, a mulher entrando quarto adentro e com braços de odalisca ensaiando gestos de uma serpente. Sim, era a dança, o ventre contorcendo-se, criando formas onduladas em um ritmo hipnótico, formas estranhas como as de um corpo sob o efeito da tortura. Ela balançava os seios enfeitados com franjas douradas, e guizos criavam uma música que parecia ressoar por toda a alma, ecoando em mim; a festa completava-se com o toque de um tamborim cheio de tranças de serpentina. Então, nessa hora, surgia a cigana, entoando o seu canto ancestral, promovendo o reencontro com mil espectros ficados para trás, no tempo, na memória; nessa aluvião atemporal eu via as faces suaves em conjuntos de espelhos que emolduravam o quarto, elas sedentas de vida olhando aquele momento repentino da entrada da mulher, como se sentissem a fragrância de um corpo, seus odores, seus suores, como se novamente se revestissem de carne, e sentissem o toque, seu movimento alucinado, e eu pensava no quanto seria bom ter todas elas, as mil mulheres retiradas do tempo, caminhando ao meu lado, no desvio da solidão que me obriga a andar, a andar no deserto; no desvio da solidão que nos acompanha, nos devora com sua febre; e eu pensei na tarefa difícil dos grandes amantes da história, aqueles que renunciam a si mesmos em função do amor. Grandes heróis, esses construtores de humanidade. Os olhos da mulher faiscavam tentando decifrar minha vida ali guardada, interrogava-me sobre esse viver emparedado, sobre o tempo em que ali ficara fincado. Perguntava-me por que, apesar de entender através dos meus olhos a admiração pela dança, não conseguia levantar os braços e convidá-la a tomar assento ao meu lado, no leito em cujos lençóis me esquecera. Eu não tinha palavras que explicassem a trajetória que fiz para ali chegar, apenas tentava sorrir dizendo o quanto a sua presença me acalmava, o quanto me fazia entender os mistérios de caminhos traçados na distância de mim, em rios que levavam a cidades petrificadas, o quarto com suas imagens e ídolos de barro, os santos de cores barrocas desbotados, comidos pela poeira. A dança iluminava o quarto e a voz da mulher, como um mantra, desafiava os meus pensamentos de mil anos acumulados.
Despertar com os guizos da cigana, beber do veneno da serpente, enlaçar-me na multidão de olhos espalhados nos espelhos, ela me perguntava se poderia ficar por mais um tempo, mas o que é o tempo quando sabemos que o sonho está prestes a ruir, fazer-se escombro com o cataclismo do dia. Ah! Eu disse que sim, que a amava, que a queria para sempre comigo, implorei que se impregnasse de mim, se envolvesse em minhas entranhas, selasse a minha alma para não perdê-la de novo, e me perdesse para sempre. Olhei no fundo daqueles olhos e vi que eram verdes de um mar manchado de embarcações egípcias, e que no centro do enorme contingente, com a maquiagem característica, resplandecia a imagem de uma sacerdotisa, vaticinando que um dia eu encontraria todas as respostas, não haveria mais enigmas que eu não decifrasse, e que o amor tão cobiçado entraria pela porta junto com o dia, despertando-me do sono terrível, aquecendo a alma falida, apontando-me novas estradas por ir, ao mesmo tempo em que não me esconderia a outra face, por vezes brutal, de sua realidade, face fatal que seria sacada sempre nos momentos de dúvida. A vida teria o seu sentido, e venceria as veredas. A sacerdotisa abraçava-me com seus braços ensolarados, contendo-me para que não fechasse de novo a porta agora aberta, e me prendesse novamente em meu templo de solidão e de desespero, a velha ferida aberta.
Mais uma vez ela entrou no quarto e me olhou profundamente. Eu acabara de despertar de um sonho, mas ainda respirava um ar entorpecido de aromas estranhos, como os de uma maré, como os de um cortejo em uma atmosfera mediterrânea, onde mil embarcações egípcias trafegavam em reverência à deusa da aurora, linda mulher de cujo ventre irradiavam luzes solares, trazendo vida a mortos encobertos pelo lodo dos anos, mortos depositados ao longo da margem; via também mulheres arruinadas recuperarem a pele, os cabelos ensandecidos ganharem a cor da juventude, recuperando a forma sedosa que embala o desejo de tantos homens devorados e sedentos por paixão. Percebia ao redor crianças fortalecidas pela esperança no futuro, distantes no momento daquelas que apareceram esquálidas, mobiliando a paisagem desértica e infernal de anos de secura. Somos nós, pensei, renascendo da miséria. Havia, portanto, naquele despertar, uma possibilidade, uma esperança de recuperar coisas perdidas, ou interrompidas no silêncio que nos tranca dentro de nós. Havia uma esperança que estranhamente percebi refletida naquele olhar de mulher, que adentrava como de costume o quarto, inusitadamente voltando-se para mim com a força de mil personalidades escondidas nas dobras da alma. Podia agora olha-la em sua profundidade e ouvir o canto de uma cigana percutindo um tamborim cheio de guizos e serpentinas, ou perceber os movimentos delicados do ventre, desenhando imagens delicadas e desconhecidas, mas qualquer coisa diferente dos movimentos do corpo que se tortura, se contorce solitário. Poderia, e agora posso, olhar no fundo dos olhos dessa mulher que me desperta as mil mulheres de meu sonho, e no centro delas aquela que traz de volta a vida, convidando-me a tomar assento ao seu lado, e cobrir-me dos raios que emite, e navegar com ela no cortejo que me lavará para o rio, um rio de águas verdes, navegá-lo até o fim, além dos limites da porta, além das paredes, navegar até o fim.
Mais uma vez ela entrou no quarto e me olhou profundamente. Eu havia sonhado a noite inteira com uma cena de amor, a mulher entrando quarto adentro e com braços de odalisca ensaiando gestos de uma serpente. Sim, era a dança, o ventre contorcendo-se, criando formas onduladas em um ritmo hipnótico, formas estranhas como as de um corpo sob o efeito da tortura. Ela balançava os seios enfeitados com franjas douradas, e guizos criavam uma música que parecia ressoar por toda a alma, ecoando em mim; a festa completava-se com o toque de um tamborim cheio de tranças de serpentina. Então, nessa hora, surgia a cigana, entoando o seu canto ancestral, promovendo o reencontro com mil espectros ficados para trás, no tempo, na memória; nessa aluvião atemporal eu via as faces suaves em conjuntos de espelhos que emolduravam o quarto, elas sedentas de vida olhando aquele momento repentino da entrada da mulher, como se sentissem a fragrância de um corpo, seus odores, seus suores, como se novamente se revestissem de carne, e sentissem o toque, seu movimento alucinado, e eu pensava no quanto seria bom ter todas elas, as mil mulheres retiradas do tempo, caminhando ao meu lado, no desvio da solidão que me obriga a andar, a andar no deserto; no desvio da solidão que nos acompanha, nos devora com sua febre; e eu pensei na tarefa difícil dos grandes amantes da história, aqueles que renunciam a si mesmos em função do amor. Grandes heróis, esses construtores de humanidade. Os olhos da mulher faiscavam tentando decifrar minha vida ali guardada, interrogava-me sobre esse viver emparedado, sobre o tempo em que ali ficara fincado. Perguntava-me por que, apesar de entender através dos meus olhos a admiração pela dança, não conseguia levantar os braços e convidá-la a tomar assento ao meu lado, no leito em cujos lençóis me esquecera. Eu não tinha palavras que explicassem a trajetória que fiz para ali chegar, apenas tentava sorrir dizendo o quanto a sua presença me acalmava, o quanto me fazia entender os mistérios de caminhos traçados na distância de mim, em rios que levavam a cidades petrificadas, o quarto com suas imagens e ídolos de barro, os santos de cores barrocas desbotados, comidos pela poeira. A dança iluminava o quarto e a voz da mulher, como um mantra, desafiava os meus pensamentos de mil anos acumulados.
Despertar com os guizos da cigana, beber do veneno da serpente, enlaçar-me na multidão de olhos espalhados nos espelhos, ela me perguntava se poderia ficar por mais um tempo, mas o que é o tempo quando sabemos que o sonho está prestes a ruir, fazer-se escombro com o cataclismo do dia. Ah! Eu disse que sim, que a amava, que a queria para sempre comigo, implorei que se impregnasse de mim, se envolvesse em minhas entranhas, selasse a minha alma para não perdê-la de novo, e me perdesse para sempre. Olhei no fundo daqueles olhos e vi que eram verdes de um mar manchado de embarcações egípcias, e que no centro do enorme contingente, com a maquiagem característica, resplandecia a imagem de uma sacerdotisa, vaticinando que um dia eu encontraria todas as respostas, não haveria mais enigmas que eu não decifrasse, e que o amor tão cobiçado entraria pela porta junto com o dia, despertando-me do sono terrível, aquecendo a alma falida, apontando-me novas estradas por ir, ao mesmo tempo em que não me esconderia a outra face, por vezes brutal, de sua realidade, face fatal que seria sacada sempre nos momentos de dúvida. A vida teria o seu sentido, e venceria as veredas. A sacerdotisa abraçava-me com seus braços ensolarados, contendo-me para que não fechasse de novo a porta agora aberta, e me prendesse novamente em meu templo de solidão e de desespero, a velha ferida aberta.
Mais uma vez ela entrou no quarto e me olhou profundamente. Eu acabara de despertar de um sonho, mas ainda respirava um ar entorpecido de aromas estranhos, como os de uma maré, como os de um cortejo em uma atmosfera mediterrânea, onde mil embarcações egípcias trafegavam em reverência à deusa da aurora, linda mulher de cujo ventre irradiavam luzes solares, trazendo vida a mortos encobertos pelo lodo dos anos, mortos depositados ao longo da margem; via também mulheres arruinadas recuperarem a pele, os cabelos ensandecidos ganharem a cor da juventude, recuperando a forma sedosa que embala o desejo de tantos homens devorados e sedentos por paixão. Percebia ao redor crianças fortalecidas pela esperança no futuro, distantes no momento daquelas que apareceram esquálidas, mobiliando a paisagem desértica e infernal de anos de secura. Somos nós, pensei, renascendo da miséria. Havia, portanto, naquele despertar, uma possibilidade, uma esperança de recuperar coisas perdidas, ou interrompidas no silêncio que nos tranca dentro de nós. Havia uma esperança que estranhamente percebi refletida naquele olhar de mulher, que adentrava como de costume o quarto, inusitadamente voltando-se para mim com a força de mil personalidades escondidas nas dobras da alma. Podia agora olha-la em sua profundidade e ouvir o canto de uma cigana percutindo um tamborim cheio de guizos e serpentinas, ou perceber os movimentos delicados do ventre, desenhando imagens delicadas e desconhecidas, mas qualquer coisa diferente dos movimentos do corpo que se tortura, se contorce solitário. Poderia, e agora posso, olhar no fundo dos olhos dessa mulher que me desperta as mil mulheres de meu sonho, e no centro delas aquela que traz de volta a vida, convidando-me a tomar assento ao seu lado, e cobrir-me dos raios que emite, e navegar com ela no cortejo que me lavará para o rio, um rio de águas verdes, navegá-lo até o fim, além dos limites da porta, além das paredes, navegar até o fim.
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